quarta-feira, 26 de maio de 2010

Vai Crescente, se consumir no nada

A lua já se fez cheia nesse vinte e seis de maio. Não mais tem seu sorriso malicioso do gato de Alice. Não transborda seu cinismo, nem acompanha pouco escondida, como os covardes. Se tornou inteira, e em deslumbre me faz bater em postes e cair de escadas, do mesmo modo que me fazem os olhos de menina se fixando no nada. Em sua ida, poderia lhe entoar escárnio, lhe desdizer, lhe maldizer. Mas antes de comemorar seu fim, minha indesejada crescente, eu gostaria de homenagear-te pelos meus dias embaixo do teu sarcásmo:
Agradeço o diálogo sob sua luz, sentado no chão.
Agradeço pelos companheiros que festejaram sua ida, envoltos na benção dionisíaca.
Agradeço por me enterrar na terra vermelha daqui, por mais tempo.
Agradeço a confusão e a dissimulação dos dias em que me observou, na ironia que mo irradiava.
Agradeço os calafrios, que sanei com fumaça e espuma.
Agradeço meus tenis e calças e papos furados, que não valem nada.
Agradeço os trocados no meu bolso, que sumiram em sua presença.
Agradeço a poesia das apostilas técnicas.
Agradeço pela peça da engranagem que voltei a ser, não as desenho mais como fazia antes
Agradeço pela voz que foi me é tirada aos poucos, fazendo verter, novamente, letras em papel.
Agradeço o alimento que voa pelo esôfago enquanto o tempo come meu dia.
Agradeço os passeios sem paralelepípedos, e como soa essa palvra.
Agradeço a boa ventura de andar bêbedo às três da manhã.
Agradeço meu violão calado a dois anos.
Agradeço os calos no pé direito, no ouvido esquerdo, as olheiras e os litros de café.
Agradeço a macabra risada no círculo vermelho que a rodeava.
Agradeço, por fim, a ti, que mesmo odiada por mim, ainda me encanta.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Praia de Santo Apollo - Primeira Parte

Praia de Santo Apolo

Fui agraciado pela vida com o presente de coletar estrelas.
É um trabalho que ajuda a ver quão pequeno e quão grande pode ser o mundo. Compreender que da mesma substância a lhes servir de matéria nesse tempo inimaginável, também serviu de matéria para meus antepassados e para mim e para qualquer coisa que existe, saber que somos da mesma fonte, que essa entidade tão superior tem um pouco disso que forma minha carne e ossos. Saber também que todos os dias elas se vão depois de gastar toda a sua energia, elas caem do céu dançando leves, pouco antes do alvorecer, num fim como o de um velho homem cansado, pousando em seus devaneios, e vão para sua última viagem, mostra como as coisas se ligam em qualquer ponto do universo, um aprendizado perpétuo.
Dessa viagem, que o caminho não sei ao certo qual é, algumas são trazidas por mar e outras se afundam na areia desta praia de Santo Apolo, uma única praia, em todo Universo. Nesse ponto abençoado, posso pegar com as mãos nuas os pedaços de cosmos que colorem os céus de qualquer ponto da existência, algo que faço com orgulho e apreço infinitos.
Elas ainda se encontram quentes, brilhantes. Tem cheiros e cores diferentes, que parecem refletir o que elas viram em tanto tempo. Sou eu quem recolho as estrelas caídas do céu na praia de Santo Apolo, todos os dias antes que o meu sol, ainda amarelo e ainda eterno, ofusque o brilho das outras.
Nas duas horas que precedem o surgimento da carruagem de fogo de Santo Apolo, ando pela angra e pela praia descalço, para sentir o calor de alguma que talvez tenha se perdido. O calor de uma estrela quando chega na areia é como o da pele de uma pessoa. Ziggy, o coletor anterior a mim, me dizia que as estrelas lhe passavam a sensação de um colo de mulher: de sua mãe, de sua tia e dos amores que teve. Diferenciava cada uma pelo som que emitia quando a balançava, sabendo sua idade, seu lugar no espaço, seu antigo poder. Na juventude ele fora magro e muito branco, cabelos cor de fogo e olhos multicoloridos, sorriso enigmático e palavras certeiras. Com o passar do tempo foi se tornando um senhor de cabelos amarelos, queimado de sol pelas horas que passa observando o sol de sua cabana, e cego.
Nós os coletores ficamos cegos com o passar dos anos. No final só enxergamos o pequeno brilho das pontinhas na praia e seu balançar no mar até morrermos e sermos jogados no horizonte de nossa vista. Quando Ziggy tinha os cabelos já amarelando e os olhos se tornando cinza, me disse ao começar minha preparação que não havia nada melhor do cegar depois de ver a existência pelas estrelas, seus pontos balançando no mar era a nostalgia necessária para se terminar a vida.
Assim aconteceu com Yosef, Apolônio, Hermes, Leonardo, Isaac, Aldous, Marquéz, Alan, Neil e todos os outros antigos coletores que viram a história de tudo pelo viés do todo, pela esfera de uma estrela. Não diria que a cegueira é o que mais espero, melhor ainda é andar pela praia e ver quem admira a queda e a dança dos astros. Gente de todos os cantos do universo, gente desesperada que quando percebe o fim vindo até para uma estrela se sente melhor: gente partindo para outras vidas, vindo ver algo grandioso, gente que passa sem motivo e se depara com o maravilhoso aleatório, grandes pensadores ao ter uma boa ideia sempre se acham aqui, viajantes perdidos buscando algum farol, poetas com a pena ainda quente no papel, Ziggy e a moça da orla norte, já no fim de minha caminhada, que sempre me entrega a ultima estrela.
É engraçado perceber que as coisas se tornaram diferentes depois da primeira visita dela à orla norte, o fim da minha caminhada. Antes eram as estrelas no chão e na maré, a dor nas costas, que ainda não me incomoda tanto, as mochilas que enchiam e as vazias que começavam a se encher. Ao vê-la de pernas cruzadas na areia, os braços sustentando o tronco, o sorriso que nunca lhe saltava a boca, a pele mais branca com o reflexo das luas, o cabelo negro, sempre solto, que ondula com e como o mar, me prendi em um enigma: Por que desse sorriso não acabar? Parece a coisa mais serena que uma retina como a minha já pôde se fixar. Por que sempre segurar o último ponto celeste do dia? Me dá sempre como o bom augúrio de minha ida pra casa. É como se ela marcasse o fim da caminhada com bons presságios e sei que seus olhos não me farão procurar resposta de sua estada ali, ou se aquietarão pela cegueira inevitável. Me pergunto, ainda agora, se é mais bonito ver o reflexo do mar verde-a-clarear nos olhos da moça, ou se o brilho radiante do próprio astro em sua mão. Talvez seja para lá, para aqueles espelhos, que vão todas as estrelas quando caem, e não para inspirar os bons homens, onde brilharão mais uma vez, depois que esvazio minha mochila no farol ao lado das pedras onde fica a moça.
As valquírias, os anjos, bons espíritos, todos levam minha coleta, todos os dias quando o sol nasce para quem fez sua prece. De lá do alto a vejo olhando com o mesmo sorriso para cima, indo embora, saudando as entidades que saem pela grande janela de aço brilhante no alto da torre guia.

 Para acompanhar a leitura

terça-feira, 4 de maio de 2010

Ares e a Chuva

De quando em quando, perambulava pelas encostas um cão insosso
de nome Ares Suas patas cansadas, seus pelos frouxos, caindo de
tanto desgosto, soltando aspas, caspas e espaços mau dados em meu
texto
Fazendo tal zanzo insalubre, sobressaindo em seu azedo olhar sobre
os pobres que sentiam o sol, Ares era a essência do expurgo
Seu ladro malograva gravemente um ser sorridente
Seu cinismo mascarava as tardes cintilantes
Sua figura expunha o espírito néscio do mundo. Era Ares arauto de
ares amargos.
Chutava-se o cão? Maltrato, malgrado... mau-vago, não vale.
Marchava então, o desgraçado, pelos vales, pelos ralos
Por espanto, num dia sem encanto, vi o cão em prantos,
quando a chuva lhe acometeu.
Fora o véu das víuvas que no tempo da vil guerra, cascatas fez
chorar.
Fora o arco do guerreiro, que em um tiro certeiro, sua vida foi parar.
Fora contra Persas, Hunos e Mongóis
Fora cruzado em Harã, Ager, Azaz
Fora imperial, Farrapo, Cabano
Residia, porém um ser soberano, a chave da arca da história
Hoje das armas era Deus o dinheiro
E Ares chorava uma chuva que não era sua
Era esse o pesar do outrora deus agora cão.