quarta-feira, 7 de abril de 2010

Mais uma noite feliz no futuro


Não me lembro das horas, mas era tarde, com minhas fichas de cerveja no bolso segui para o Clandestino. Ia encontrar meus amigos longe de minha esposa, o que não fazia problema, nos odiávamos. Casei como determinava a nova constituição de 2018, algo como um acordo entre nós para não perdermos os empregos, fomos obrigados ter um filho e um trabalho que condizia com nossos diplomas.
_Senha ô bacana _ O Luiz era o leão de chácara agora, apesar de me conhecer, sempre falava o mesmo para não levantar suspeitas.
O bar era embaixo de uma loja de carros, "Benção sob rodas", o sob era um trocadilho que eu fiz para o Aquino, o dono da loja e do bar. Quando perguntado, ele dizia que foi um erro da gráfica.
_ Moloko loko? _ tentei não sorrir, mas sabia que mais tarde ele se juntaria a nós. A entrada era na frente de um ponto de ônibus, algo como um alçapão que só podia entrar um por vez. Por dentro o Clandestino era escuro e fechado, sem uma ventilação e sem cadeiras pesadas, eram caixotes que tinham bíblias dentro, assim como um palquinho com shows e músicos preparados para cantar os hinos de sucesso caso chegasse alguém.
Quanto a mim, meu diploma me dizia para ensinar português, ou melhor, uma lembrança do que era. Agora apenas passava as regras da língua, porque ninguém me escutava ou queria escutar sobre literatura que não a que vendia. A de verdade foi banida com a grande depressão dos livros de 22 e um exemplar de qualquer coisa do Sallinger ou do Orwell valia muito. Os bons foram jogados no lixo por não terem sentido mais e porque os pastores mandavam. Sebos são raros e a internet perdeu seu sentido com a conversão em massa do estado em laico e com a maioria de eleitos das igrejas protestantes para as cadeiras de qualquer posto político, assim como os donos das grandes empresas. Ah, a igreja católica terminou com a denúncia da pedofilia do papa em 2013.
_ Puxa um caixote, essa tá mais gelada _ Ciro agora é chefe de uma financeira, casado e com uma filha. Ia à mesma igreja que eu. Os cultos fechados eram reuniões de um grupo que era contra tudo aquilo. As passagens da bíblia eram códigos para nós.
Nossa rede tinha mais de cinqüenta mil adeptos e quase fomos pegos duas vezes por atividade violenta contra o estado, ou seja, a igreja.
_Tá nada, mas é cerveja (Trás um copo pro Daniel) _ Nelson é da mesma financeira do Ciro, mas ia na igreja dos pais da Ana, pra não se expor tanto como nós.
O engraçado é que sem um candidato forte para as eleições de 2010, um pastor do republicano cristão conseguiu muitos votos no Brasil, se tornando o estadista. Nosso país a primeira república a seguir essa idéia. Com a queda do catolicismo poucos anos depois, o mundo ocidental se tornou protestante.
_ Carregar a mercadoria pra cá tá foda cara _ Raphael dirige o mercadinho e seis lojas de informática com seu irmão, eles eram os fornecedores e lá se compram as ficha, Elyel trazia mais uma e meu copo.
A música que ouvíamos antes e que, gera suspeitas, foi guardada nos cartões de memória e é escutada baixinho aqui.
Entendam, não é uma repressão direta, mas uma moralização geral e fundada na compra e no que é correto. Sim, a mesma coisa, com outras palavras. A diferença é que ferir o estado implica em ferir o nome de Deus e conseqüentemente perder o empregos, ter a carteira de identidade desvalidada e ser vítima de um linchamento "sem suspeitos" por fanáticos religiosos "caçados" pelos policiais.
_ Saudades dos tempos do Soma, Doze e passeios pelo centro _ Elyel falava isso sempre que nos encontrávamos e pergunta do cigarro sempre vinha do Ciro...
_ Conseguiu algum "smoka" Daniel? Essa idéia de ser subversivo é que me faz acordar todo dia! _ e completava _ Penso na cabana que o Chuchu vive em Rondônia e no que ele tem feito lá com aquelas mulheres liberais e as festas do pessoal da comunidade _ O suspiro era geral _ Você ainda conseguia pra acender como incensos no seu quarto pelo menos, eu nem isso...
A verdade é que quando completei meus vinte e cinco anos surgiu a lei anti fumo de verdade, que através de uma vacina tornava qualquer contato com o tabaco causadora de náuseas. Lembro-me dos quilos que emagreci naquela época e que acendia cowboys vermelhos quando queria escrever. Hoje em dia custam vinte e cinco reais o maço e parei de contribuir com qualquer revista ou jornal dos dias de hoje. Aquilo me dava mais enjôo do que qualquer "incenso" que acendia.
Quando o Luiz e a Piaba (agora comendador Danilo) se sentaram, todos levantamos as "garras" e continuamos a velha falácia de sempre, relembrando os velhos tempos e colocando nossos problemas pra fora. Aos quarenta e alguns, vivendo presos ali e sem podermos deixar nossa vida, agora filhos e mulheres que alguns de nós gostávamos, ir pra Rondônia e acabar os dias por lá. Não deixamos a tristeza vir maior porque aquele era um dia especial, todos sabiam. O Gyn Vitória ia tocar. Tico odiava a guitarra de lá e deixava a sua na igreja onde freqüentava. Adorava colocar as notas do AC/DC ou do Black Sabbath entre "aleluias" e "louvados seja". Fui até ao palco, fiz um breve discurso sobre a falta de sentido dos impostos mais baixos, juntos com o dízimo, cobrados no arroz e no feijão. Cantei o suficiente: Pedrão com sua mão pesada e força da mesma época de moleques, Daniel ainda destruindo no baixo e o Tico sempre matador. Naquilo deixávamos as raivas de cada um, as frustrações enormes daqueles dias. Fomos aplaudidos de pé. Partimos todos por volta das duas da manhã. A desculpa era o que menos importava. Logo estaríamos em casa, com nossas mulheres e filhos, compartilhando de uma mesma tirania e de um Deus particular que nos fazia estar ali toda semana.
Mais uma noite feliz no futuro.